DOCUMENTÁRIO

O cinema começa como documentário. Um dos primeiros filmes dos irmãos Lumière, no final do século XIX, apresentava a chegada de um trem a uma estação francesa, e assustou tanto quem assistiu que muitas pessoas correram durante a projeção, com medo de serem atropeladas de verdade. O fato de elas não serem atropeladas não altera em nada os sentimentos reais que a imagem suscitou.
O filme “Clarice Lispector: a descoberta do mundo”, de Taciana Oliveira, passeia pela vida e literatura da escritora com essa força concreta de realidade; porém, em uma montagem de sonho, percebida como consequência de impressões sensoriais profundas que nos remetem à obra de Clarice. Não é um filme feito apenas para informar, mas, para transformar quem assiste, ao passo que a fruição de sua narrativa passa pelo corpo.
Não à toa, a cineasta escolhe com recorrência as imagens de encontro da corporalidade humana, mais especificamente da mulher, com o mar; do mar com o céu; do céu com as nuvens. Uma riqueza imagética plena de conexões e significados que nos acompanham depois, sob a forma de perguntas.
O documentário é contado a partir de duas narrativas cinematográficas que deslizam de forma paralela: a narrativa das imagens e a do texto.
A primeira nos prepara (afinal, perceber o mundo consome tempo) para o impacto da segunda, quando os depoimentos, documentos e frases do universo clariceano arrebatam nossa atenção – ganhando assim uma notável mobilidade rítmica – para jogá-la em uma outra estrutura hierárquica, que é uma mistura das duas.
Esse híbrido é o universo clariceano propriamente dito, misto de espanto, epifanias e escavações interiores das quais ninguém sai ileso.
O curioso é que o ponto de vista de Taciana Oliveira não é a de quem chegou com respostas, esperando que a realidade sobre a vida de Clarice as confirmasse; pelo contrário.
O filme dá a impressão de descobrir, junto com quem assiste, as frestas da personalidade de uma mulher enigmática, que escreveu sobre temas complexos de uma forma extremamente clara – e profunda.
Some-se a isso a rica documentação levantada ao longo do filme e a riqueza plural das imagens coletadas, cheias de beleza – e poesia; e temos a construção de uma realidade tão espontânea que confere, ao filme, uma força imediata admirável.
Clarice é uma personagem que, ao contrário de se recusar em ser decifrada, oferece mil possibilidades de decifração, todas verossímeis. Taciana Oliveira opta por sequências marcadas pelo feminino, no que ele guarda de delicadeza e força. Ao invés de escolher uma atriz que representasse Clarice, coloca em ação meninas várias, mulheres que andam pelas ruas de Recife ou do Rio de Janeiro, catalisando assim o elemento de identificação da obra clariceana – todas as mulheres podem ser Clarice, ou suas personagens, pois que a literatura é esse portal de viagem e transmutação, de chegada e de reconhecimento.
Recifense, Taciana Oliveira ainda presta uma homenagem a sua cidade, marcando a presença de Clarice Lispector por suas ruas, suas praias, suas festas populares, como se Clarice, conosco, sobrevoasse o Capibaribe. Em dado momento, o documentário cruza as questões estéticas e políticas e situa Clarice na sua dimensão cidadã, em plena ditadura militar, e o voo temporal nos traz aos dias de hoje, pois a descoberta do mundo não acaba. A descoberta do mundo continua.
“Clarice Lispector: a descoberta do mundo” traz suas câmeras apontadas para aspectos pouco explorados da autora, nuances de sua personalidade e história, traduzindo sua vida em imagens oníricas e depoimentos emocionantes.
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