DOCUMENTÁRIO
A máquina viva de Clarice
por Daniel Glaydson Ribeiro, poeta e professor de literatura.
Você matou minha personagem, ela ousa dizer à medicina inútil, enquanto espera seu arenque marinado e uma cerveja preta, clandestina, Caracu, para subir. A angústia que cortara sempre a sua palavra, deixando-a exposta como num livro de Lispector, já havia anunciado sua morte infinitas vezes, infinitas, ao mesmo tempo em que ela sabia, plenamente personagem-autora, que renasceria, renasceria misteriosa e sempre.
A máquina de datilografar de Clarice está mais viva que este país. Assim como Taciana Oliveira, que ultimou o documentário já imprescindível à história do cinema e da literatura nacionais, "Clarice Lispector: A Descoberta do Mundo", está tão entranhada na obra clariceana a ponto de fazer-sentir que o roteiro deste doc foi escrito àquela máquina, seja ela de ferro sobre pernas acomodadas em um sofá ou de bronze esculpido numa praça do Recife, um roteiro que talvez não quisesse ser roteiro, nem crônica encomendada, mas conto, novela, romance: um nouveau roman que chove daquela criatividade que um dia deixará de ser palavra, para se tornar comunhão espontânea entre as almas viventes, no avançar de tempos melhores, sonhados por Clarice entre fotos e poses nunca sorridentes, mas também entre manifestações contra a ditadura (de ontem?).
Mergulhamos na intimidade da autora como se ela fosse Lóri, como se uma aprendizagem ou o livro dos prazeres pudessem ser filmados, ou melhor, e mais ainda, filmadas. Vislumbramos entrevistas e materiais raríssimos, como se fôssemos o próprio Ulisses, homem ou cão. O cão-homem, seja aquele que tenta violentar Clarice (e a "corja Jânio Quadros" se metamorfoseia no poder), seja aquele que demite Clarice por conta de outros homens, em redações de jornais que zombam de Clarice por sua língua presa e pelo obsessivo cuidado que ela declarava, semanalmente, com seus textos, versões únicas, já que lhe incomodava as dobras, as ranhuras, os franzidos que o carbono causava ao papel na máquina de datilografar: não cabiam outras dobras além da própria dobra: le pli.
Apenas uma bruxa, portanto, como ela (e aqui sentimos seu poder esotérico como num livro) poderia se desdobrar assim, ressurgir de tal modo, da brasa que seus textos não deixarão morrer em cinza, mas em água viva, res-surgir como a própria diretora de um longa-metragem póstumo. Renascer nas praias de Recife ou do Rio de Janeiro, Suíça, Washington, Ucrânia, aldeia natal, em trânsito de imigrantes fugitivos e pobres, depois ao lado de diplomatas quiçá igualmente pobres, na face de atrizes que guardam algo do seu talhe, do desenho de seus lábios abissais, enquanto escutamos marítimos recortes precisos de sua escritura-onda penetrantemente inefável, nascedouro.
Já disseram Adriane Garcia e Tadeu Sarmento, poetas solares, que "a cineasta escolhe com recorrência as imagens de encontro da corporalidade humana, mais especificamente da mulher, com o mar; do mar com o céu; do céu com as nuvens. Uma riqueza imagética plena de conexões e significados que nos acompanham depois, sob a forma de perguntas." quem sou eu? quem é Ulisses? quem são as pessoas? que perguntas fará a Clarice reencarnada em leitora comum, em espectadora como-um, diante do seu próprio filme, sem saber que foi ela mesma que o filmou, outrora? que angústia brotará, infinita, dos elogios rasgados, das variantes expostas, das farpas secretas? Bonita? Não, mulher.